Vivemos nossas vidas tomando como perfeitamente certa a realidade que nos cerca. Por vezes questionamos se algo foi verdadeiramente real ou um mero fruto de nossa imaginação. Memórias nos pregam peças, visões às vezes enganam e alguns sonhos são tão reais que fica difícil distinguir se foram mesmo apenas sonhos. Mas raramente paramos para pensar sobre a natureza do que chamamos de real.
Somos constantemente levados a crer que tudo que existe no mundo está limitado ao que pode ser percebido por nossos sentidos. Mas não é preciso muito para constatar que os tais sentidos humanos são extremamente limitados e, não raramente, também enganosos e pouco confiáveis.
Podemos começar falando sobre nossos olhos, que são capazes de enxergar naturalmente apenas um espectro muito restrito de comprimento de ondas eletromagnéticas se comparado às possibilidades existentes. Nosso mundo visual perceptível resume-se ao pequeno intervalo entre vermelho e violeta. Os pássaros, por exemplo, enxergam um espectro de cores bem mais extenso que nós, captando comprimentos ultravioleta. Algumas cobras, por outro lado, podem enxergar suas presas no escuro por detectar a radiação infravermelha de corpos quentes através de um órgão termorreceptor chamado Fosseta Loreal.
Além da visão, é possível elencar nossa inaptidão em cada um dos outros sentidos, mesmo que os tomemos como perfeitamente capazes de compreender a realidade tal como ela é.
Tais fatores abrem margem para que se discuta sobre a infinidade de possíveis coisas que podem estar constantemente ao nosso redor e fogem completamente de nossa percepção sensorial e, consequentemente, de nossa compreensão e que poderiam formar um outro entendimento do conceito de realidade que é atualmente desconhecido por nós.
Ao tomarmos como a mais pura realidade tudo e somente aquilo que podemos compreender através de nossos sentidos, não apenas a limitamos à insignificância de nossa minúscula capacidade de percepção, como também assumimos o risco de tomar como real ocorrências que não passam de distorções.
Podemos dizer que a realidade é um produto da interpretação? Para um daltônico, o céu verde é tão real quanto o azul é para mim, mas quem garante que o fato dos ditos normais o verem azul faz com o que ele realmente o seja?
Seria a realidade então factualmente intrínseca às propriedades físicas materiais ou construída particularmente pela percepção individual? Mas se a percepção individual distinta da norma leva à exclusão, qual proporção da coletividade seria necessária para construir uma realidade? Se exatamente metade da população mundial fosse daltônica, o céu considerado real seria o azul ou o verde?
Seria a realidade um resultado do real, da representação do real ou da interpretação da representação do real? A realidade existe de maneira independente e podemos tentar apreender parte dela através de nossos sentidos ou ela nasce justamente como resultado sensorial no momento em que convertemos estímulo externo em cognição?
Levantadas essas questões, podemos propor três afirmações: Primeiramente, que a realidade existe independente de nós; em segundo lugar, que nós a interpretamos através de nossos sentidos; e, por fim, que nossos sentidos são falhos. Com base nisso, a dúvida que fica é o quanto ignoramos da possível realidade existente.
Sabendo que nossos sentidos são, de maneira geral, pouco ou nada confiáveis, o que impediria então a existência de outras camadas de realidade coexistindo com a nossa e possuindo infinitos outros elementos que existem ao nosso redor e, ainda assim, são completamente alheios à nossa percepção?
Quem pode garantir que à nossa volta não exista todo um universo fervilhando tal qual o nosso, mas que mantém-se absolutamente oculto por estar além dos limites percebíveis por nossos sentidos? E se essas diversas camadas coexistissem sobrepostas no mesmo plano físico sem que jamais uma tomasse conhecimento da existência da outra?
Mas se a realidade existe independente de nós e somos incapazes de compreendê-la de maneira objetiva porque a experienciamos através de subjetividades e filtros particulares, então de certa forma é possível dizer que vivemos em uma segunda camada de realidade: não a realidade real, mas um extrato produzido pelo consenso social subjetivo dela. Ou seja, o produto da percepção coletiva da realidade que reside na interseção das realidades subjetivas individuais.
O resultado dessa segunda camada seria então fruto de um senso comum inconsciente da realidade. Tomamos naturalmente como real aquilo que não apenas é considerado real para nós, mas que também encontra eco na realidade do outro. Assim como tendemos a discriminar realidades individuais que divergem do consenso, independente dela pertencer ou não a uma possível realidade objetiva. Podemos duvidar de nossa sanidade quando algo tido como real para nós é percebido como estando fora da realidade para os outros, do mesmo modo que julgamos o outro como insano caso tome como autêntico questões que fogem ao consenso.
Em uma sociedade teocêntrica que pratica sacrifícios humanos aos deuses em troca de, por exemplo, fartura agrícola, a relação entre sacrifício e fartura é considerada real, mesmo que não seja objetivamente real. Aqueles que discordam dessa relação podem ser vistos como lunáticos e, possivelmente, coagidos a se enquadrar naquilo que é tido como o verdadeiro real.
Por outro lado, algumas culturas ao longo da história reputaram aos tidos como insanos um caráter profético. A suposta percepção daquilo que transcende a realidade seria não um comportamento lunático, mas uma graça divina. Provavelmente uma crença oriunda da compreensão sobre a própria fragilidade no que tange o entendimento da realidade objetiva, supondo que só ao se alienar da ilusão da realidade subjetiva que seria possível vislumbrar a complexidade do verdadeira real.
Por enquanto não sabemos a resposta para muitas perguntas, mas isso significa apenas que não somos capazes de encontrar uma explicação no momento. Certamente no futuro descobriremos novas coisas que nos permitirão conhecer mais sobre a realidade. Mas por enquanto ela continua vagando indiferentemente ao nosso redor e o melhor que podemos fazer é tentar compreendê-la da melhor forma possível.