Aparentemente era apenas mais uma manhã normal para Mário. Mesmo antes de se reclusar naquela casa de praia já mantinha o hábito de começar o dia observando a vista do mar enquanto tomava uma quente xícara de chá. Mas a normalidade desta vez era, de fato, apenas aparente.
Ainda semidesperto Mário pôs a chaleira no fogo e dirigiu-se para a janela, onde pôde ver ao longe um corpo desfalecido prostrado em meio à beira-mar. Aquela visão o deixou perturbado, trazendo lembranças de algo que ainda não conseguira superar, mas o soar da chaleira subitamente interrompeu seus pensamentos para informar que a água já estava fervida e pronta para se amalgamar às ervas. Ao retornar à janela, após servir-se da xícara de chá, percebeu que nesse ínterim o corpo sumira, não havendo portanto qualquer sinal do homem que outrora se encontrava ali.
Questionando-se sobre a realidade de sua visão sem saber se, após tanto tempo sob controle, a loucura resolvera revisitá-lo, Mário fez algo que já há muito não fazia e que, em seu íntimo, julgava que nunca mais poderia fazer: Saiu da clausura de sua residência. Em plena luz do dia.
Chegando ao referido local em que avistara o corpo desfalecido nada pôde confirmar que houvera algo ali, já que com o movimento da maré quaisquer vestígios que pudessem provar sua visão já teriam sido apagados. Mário olhou ao redor, a essa hora a praia estava deserta e não havia o menor sinal de que alguém além dele passara por ali naquela manhã.
Um princípio de desespero o acometeu, não suportava a ideia de que os delírios pudessem voltar após tanto tempo, algo tinha que estar errado. E estava. Na adrenalina de seu desespero fitou as pedras que se dispunham harmoniosamente na encosta e, entre elas, viu algo que poderia ser a pista que procurava: Uma maleta.
Obviamente aquilo poderia estar ali há tempos, alguém poderia tê-la jogado lá ou até mesmo a maré ter trazido, mas não era momento de usar a lógica, Mário precisava de algo para se apegar que pudesse mantê-lo lúcido e seria aquela maleta.
No regresso à praia, Mário, que encontrava-se tomado pela ansiedade de abrir a valise que acabara de buscar, foi surpreendido por um som estridente. Ao procurar a origem do som, percebeu que o mesmo era proveniente do interior de sua residência, cuja janela encontrava-se agora escancarada. Esquecendo-se completamente da curiosidade de descobrir o que havia na mala, agarrou-a fortemente com a mão direita e partiu em disparada. Chegando ao lar, encontrou algumas coisas fora do lugar e um estranho rastro líquido pelo chão, mas não havia nenhum sinal do suposto invasor.
Temendo pela própria sanidade buscou um copo d’água e sentou-se no sofá, na tentativa de acalmar-se enquanto abria a maleta. A primeira impressão era de que o dono era alguém importante, ou no mínimo elegante, pois o conteúdo se compunha de um belíssimo terno risca de giz e um igualmente charmoso fedora preto, embaixo do chapéu havia um recorte de jornal estrangeiro que Mário não conseguiu ler, aparentemente estava em francês, mas o mais surpreendente foi descoberto no bolso interno do paletó: Um punhado de documentos de identidade, todos com a mesma foto, mas cada um possuíndo um nome diferente. Mário passou rapidamente os olhos pelos documentos sem entender muito, até que um deles despertou sua atenção, pois os dados contidos naquela cédula de identidade batiam exatamente com os seus.
Atarantado e receoso, ele jogou tudo novamente para dentro da maleta. Enquanto pensava no que lhe ocorrera e questionava a própria sanidade guardou o objeto sob o sofá e levantou-se para tomar outro copo d’água. Nesse momento não sabia mais se aquilo era verdade ou um completo delírio de sua cabeça e essa ida à cozinha piorou ainda mais as coisas, pois ao retornar à sala constatou que a maleta havia desaparecido.
Nada lhe parecia fazer sentido, e pior, sentia-se observado, como se cada um de seus passos estivesse sendo acompanhado por olhos famintos que o dilaceravam sem que sequer precisassem tocá-lo. Ele estava realmente enlouquecendo, ou ao menos era o que acreditava, até que novamente algo o fez crer que tudo era real: No reflexo do espelho posicionado defronte ao sofá pôde ver um vulto se esgueirando com a maleta em seu quintal. Mário rapidamente se levantou e correu até o local, quem quer que estivesse ali já havia desaparecido, mas desta vez haviam vestígios.
O homem que se movia tal qual um fantasma finalmente deixara um rastro a ser seguido, e foi o que Mário fez. Precisava provar para si mesmo que não estava louco, ele sabia que não estava, sempre soube, mas tudo parecia tão desconexo que o fazia questionar a si mesmo, tão desconexo quanto aquelas pegadas que iam em direção à garagem em que guardava seu barco.
Mário não entrava lá há anos, jamais assumiria, mas claramente ainda não estava pronto para rever sua antiga embarcação, não depois de tudo que lhe ocorreu, mas agora havia um motivo muito forte para entrar, precisava descobrir o que estava realmente acontecendo. Abriu a porta, a lâmpada há muito já havia deixado de funcionar, vitimada pela falta de uso, e o ambiente estava parcamente iluminado pela luz do dia. Colocou um pé para dentro, hesitou por alguns segundos na hora de colocar o outro, mas o fez.
Uma vez dentro da garagem olhou, em vão, ao redor, mas todo o interior estava tomado pela mais completa penumbra. Seus sentidos pareciam estar suspensos, não enxergava meio palmo à sua frente, não ouvia nada, apenas sentia o nauseante cheiro de mofo daquela construção que manteve fechada por tantos anos, até que ouviu dois barulhos abafados: O primeiro veio da porta que se fechara subitamente jogando Mário na total escuridão e o segundo, ainda mais próximo, de sua cabeça, que fora fortemente atingida por um golpe desferido por um dos remos de seu barco.
Aparentemente era apenas mais uma manhã normal para Mário. Ainda semidesperto pôs a chaleira no fogo e dirigiu-se para a janela, onde pôde ver ao longe um corpo desfalecido prostrado em meio à beira-mar. O corpo do verdadeiro Mário.